Monday, January 21, 2008

Alocução do Santo Padre Bento XVI na «La Sapienza”Texto enviado ao reitor da universidadeCIDADE DO VATICANO, domingo, 20 de janeiro de 2008
Texto da alocução que o Santo Padre Bento XVI teria pronunciado no curso da Visita àUniversidade de Estudos "La Sapienza" de Roma, prevista para 17 de janeiro, depoiscancelada em 15 de janeiro de 2008.
Magnífico Reitor,
Autoridades políticas e civis,
Ilustres docentes e pessoal técnico-administrativo,
Caros jovens estudantes!
Para mim é motivo de profunda alegria encontrar a comunidade de "La Sapienza",universidade de Roma, por ocasião da inauguração do ano académico. Desde há séculos,esta Universidade marca o caminho e a vida da cidade de Roma, fazendo frutificar as melhores energias intelectuais em todo campo do saber. Seja no tempo em que, após a fundação querida pelo Papa Bonifácio VIII, a instituição estava em direta dependência da autoridade eclesiástica, seja após isso, quanto o Studium Urbis se desenvolveu como instituição do Estado italiano, a vossa comunidade académica conservou um grande nível científico e cultural, que a coloca entre as mais prestigiosas universidades do mundo. Desde sempre a Igreja de Roma olha com simpatia e admiração para este centro universitário, reconhecendo o seu esforço, tantas vezes árduo e trabalhoso, da pesquisa e da formação das novas gerações. Não faltaram nestes últimos anos momentos significativos de colaboração e de diálogo. Gostaria delembrar, em particular, o Encontro Mundial dos Reitores por ocasião do Jubileu dasUniversidades, que viu a vossa comunidade encarregar-se não só da acolhida e da organização, mas principalmente da proposta profética e complexa da elaboração de"um novo humanismo para o terceiro milênio".Desejo muito, nesta circunstância, expressar minha gratidão pelo convite que me foi dirigido de vir à vossa universidade para vos dar uma aula. Diante desta perspectiva, fiz-me antes de mais nada uma pergunta: o que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha aula em Ratisbona falei, sim, como Papa, mas principalmente falei no meu papel de ex-professor daquela minha universidade,procurando entrelaçar recordações e actualidade. Na universidade "La Sapienza", a antiga universidade de Roma, porém, fui convidado justamente como Bispo de Roma, e por isso devo falar como tal. Certamente, "La Sapienza" foi no passado a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica, com aquela autonomia que,com base em seu próprio conceito fundacional, sempre fez parte da natureza de universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. É na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas que a universidade encontra a sua função particular, justamente em vista da sociedade moderna, que precisa de uma instituição desse tipo.Retomo a minha pergunta inicial: o que pode e deve o Papa dizer no encontro com a universidade da sua cidade? Reflectindo sobre essa pergunta, pareceu-me que ela deveria incluir outras duas, cujo esclarecimento poderia levar por si mesmo à resposta. Com efeito, é preciso perguntar: qual é a natureza e a missão do papado? E ainda: qual é a natureza e a missão da universidade? Não quero passar aqui convosco em longas digressões sobre a natureza do Papado. Bastará um breve comentário. O Papa é, antes de mais nada, Bispo de Roma e, como tal, em virtude da sucessão do Apóstolo Pedro, tem uma responsabilidade episcopal que diz respeito a toda a Igreja Católica.A palavra "bispo" episkopos , que no seu significado imediato quer dizer"vigilante", já no Novo Testamento se fundiu com o conceito bíblico de pastor: ele é aquele que, desde um ponto de observação mais elevado, olha o conjunto, velando pelo justo caminho e pela coesão do conjunto. Neste sentido, esta designação do seu papel orienta o olhar principalmente para o interior da comunidade dos fiéis. O Bispo, o Pastor, é o homem que cuida desta comunidade; aquele que a conserva unida, mantendo-a no caminho rumo a Deus, indicado segundo a fé cristã por Jesus e não apenas indicado: Ele mesmo é para nós o caminho. Mas esta comunidade da qual o Bispo cuida pequena ou grande vive no mundo; as suas condições, o seu caminho, o seu exemplo e a sua palavra influem inevitavelmente sobre toda a comunidade humana no seu conjunto. Quanto maior ela for, mais as suas boas condições ou a sua eventual decadência repercutirão no conjunto da humanidade. Vemos hoje, com muita clareza, como as condições das religiões e como a situação da Igreja, as suas crises e as suas renovações agem sobre a humanidade como um todo. Assim, o Papa, justamente como Pastor da sua comunidade,foi-se tornando cada vez mais também uma voz da razão ética da humanidade.Aqui, porém, surge logo a objecção, segundo a qual o Papa, de fato, não falaria realmente com base na razão ética, mas tiraria suas afirmações da fé, e por isso não poderia pretender uma validade das mesmas para os que não compartilham esta fé.Vamos voltar ainda sobre este tema, porque aqui se coloca a questão absolutamente fundamental: o que é a razão? Como pode uma afirmação sobretudo uma norma moral demonstrar-se como "razoável"? Neste ponto, eu gostaria por um momento de comentar brevemente que John Rawls, mesmo negando a doutrinas religiosas em geral o carácter de razão "pública", vê no entanto na sua razão "não-pública" ao menos uma razão que não poderia, em nome de uma racionalidade secularisticamente endurecida, ser simplesmente desconhecida por aqueles que a apoiam. Ele vê um critério desta razoabilidade, entre outros factores, no fato de que essas doutrinas derivam de umatradição responsável e motivada, na qual, ao longo de muito tempo, foramdesenvolvidas argumentaçõesboas o suficiente para apoiar as respectivas doutrinas. Nesta afirmação, parece-meimportante o reconhecimento de que a experiência e a demonstração no decurso de gerações, o fundo histórico da sabedoria humana, são também um sinal da sua razoabilidade e do seu significado perdurável. Frente a uma razão a-histórica que seprocura autoconstruir apenas numa racionalidade a-histórica, a sabedoria dahumanidade como tal a sabedoria das grandes tradições religiosas é de valorizar-secomo realidade que não se pode impunemente jogar no cesto de lixo da história dasidéias.Voltemos à pergunta inicial. O Papa fala como representante de uma comunidade de fé,na qual, durante os séculos de sua existência, foi amadurecendo uma determinadasabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que custodia em si umtesouro de conhecimento e de experiências éticas, que vem a ser importante para todaa humanidade: neste sentido, fala como representante de uma razão ética.Mas agora é preciso perguntar: e o que é a universidade? Qual é o seu papel? É umapergunta gigantesca, à qual, mais uma vez, posso procurar responder somente numestilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que é possível dizer que averdadeira, íntima origem da universidade esteja na fome de conhecimento que éprópria do homem. Ele quer saber o que é tudo o que o circunda. Neste sentido,podemos ver no interrogar-se de Sócrates o impulso do qual nasceu a universidadeocidental. Penso, por exemplo apenas para mencionar um texto na disputa comEutífron, que, diante de Sócrates, defende a religião mítica e sua devoção. A issoSócrates contrapõe a pergunta: "Tu acreditas que entre os deuses existam realmenteuma guerra mútua e terríveis inimizades e combates... Devemos, Eutífron, realmentedizer que tudo isso é verdade?" (6 b c). Nesta pergunta, aparentemente pouco devotaque, porém, em Sócrates derivava de uma religiosidade mais profunda e mais pura, dabusca do Deusrealmente divino , os cristãos dos primeiros séculos reconheceram-se a si mesmos e opróprio caminho. Acolheram a sua fé não num modo positivista, ou como a saída pararesponder a desejos insatisfeitos; eles a entenderam como o fim da névoa da religiãomitológica para dar lugar à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e ao mesmotempo Razão-Amor. Por isso, o questionamento sobre o Deus supremo, assim como sobrea verdadeira natureza e o verdadeiro sentido do ser humano não era para eles umaforma problemática de falta de religiosidade, mas fazia parte da essência do seumodo de ser religiosos. Não precisavam, portanto, dissolver ou deixar de lado oquestionamento socrático, mas podiam, ou melhor, deviam acolhê-lo e reconhecer comoparte da própria identidade a busca afanosa da razão, para chegar ao conhecimento daverdade por inteiro. Deste modo, a universidade podia, até mesmo devia, nascer noâmbito da fé cristã, no mundo cristão.É preciso dar mais um passo. O homem quer conhecer quer verdade. Verdade é,primeiramente, algo ligado ao ver, ao compreender, à theoria, como é chamada pelarazão grega. Mas a verdade nunca é somente teórica. Agostinho, ao fazer a correlaçãoentre as Bem-Aventuranças no Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionadosem Isaías 11, afirmou uma reciprocidade entre a "scientia" e a "tristitia": o merosaber, diz ele, nos deixa tristes. E de fato quem vê e apreende somente tudo o queacontece no mundo, termina por ficar triste. Mas verdade significa mais do quesaber: o conhecimento da verdade tem como meta o conhecimento do bem. Este é tambémo sentido do questionamento socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? Averdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fécristã, dado que a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, naencarnação de Deus, revelou-se ao mesmo tempo como o Bem, como a própria Bondade.Na teologia medieval houve uma disputa profunda sobre a relação entre teoria epráxis, sobre a justa relação entre conhecer e agir uma disputa que não vamosdesenvolver aqui. De fato, a universidade medieval, com as suas quatro faculdades,apresenta esta correlação. Comecemos com a faculdade que, de acordo com acompreensão da época, era a quarta, a de medicina. Mesmo sendo considerada mais comouma "arte" que como uma ciência, sua inserção no cosmo da "universitas" significavaclaramente que era colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar estavasob a direção da razão e era subtraída ao âmbito da magia. Curar é uma tarefa quecada vez mais requer a simples razão, mas justamente por isso precisa da conexãoentre saber e poder, precisa pertencer à esfera da ratio. Surge inevitavelmente aquestão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e agir na faculdade deDireito. Trata-se de dar uma justa forma à liberdade humana que é sempre liberdadena comunhãorecíproca: o direito é o pressuposto da liberdade, não o seu antagonista. Mas logovem à tona a pergunta: como identificar os critérios que tornam possível umaliberdade vivida em conjunto e servem ao "ser bom" do homem? A esta altura um saltono presente se faz imperioso: é a questão de como poder encontrar uma normativajurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dosdireitos do homem. É a questão que nos ocupa hoje nos processos democráticos deformação da opinião, e que ao mesmo tempo nos angustia como questão para o futuro dahumanidade. Jürgen Habermas exprime, na minha opinião, um vasto consenso dopensamento atual, quando diz que a legitimidade de uma constituição, comopressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação políticaigualitária de todos os cidadãos e da forma razoável na qual os contrastes políticossão resolvidos. Sobre essa "forma razoável", ele faz notar que ela não pode serapenas uma luta por maioriasaritméticas; deve ser caracterizada como um "processo de argumentação sensível àverdade" (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren). A expressão é ótima, mas éalgo muito difícil de transformar em práxis política. Os representantes daquele"processo de argumentação" público são bem o sabemos prevalentemente os partidos,como responsáveis pela formação da vontade política. De fato, eles terãoinelutavelmente como meta principal a consecução de maiorias, e por isso sepreocuparão quase inevitavelmente com os interesses que prometem satisfazer; estesinteresses, contudo, são com muita freqüência particulares, e não servem realmenteao todo. A sensibilidade pela verdade é mais uma vez sufocada sob a sensibilidadepelos interesses. Acho significativo o fato de que Habermas fale da sensibilidadepela verdade como elemento necessário no processo de argumentação política,reinserindo assim o conceito de verdade no debate filosófico e político.Mas então se torna inevitável a pergunta de Pilatos: o que é a verdade? E como podeser reconhecida? Se a isso se responde apelando à "razão pública", como faz Rawls,segue necessariamente outra vez a pergunta: O que é razoável? Como uma razão sedemonstra como razão verdadeira? Em todo caso se torna evidente que, na busca dodireito à liberdade, à verdade da justa convivência, devem ser ouvidas outrasinstâncias além dos partidos e grupos de interesse, sem com isso querer minimamentecontestar a sua importância. Voltamos assim à estrutura da universidade medieval. Aolado do Direito estavam as faculdades de Filosofia e Teologia, às quais era confiadaa pesquisa sobre o ser humano em sua totalidade e, com isso, a missão de manterdesperta a sensibilidade pela verdade. Poderíamos até dizer que este é o sentidopermanente e verdadeiro de ambas as faculdades: ser guardiãs da sensibilidade pelaverdade, não permitir que o homem seja desvinculado da busca da verdade. Mas comoelas podemcumprir essa tarefa? Esta é uma pergunta pela qual é preciso trabalhar sempre denovo, nunca está definitivamente resolvida. Sendo assim, neste ponto nem eu possooferecer propriamente uma resposta, apenas um convite, de prosseguir no caminho comesta pergunta no caminho com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram eprocuraram, com suas respostas e com seu interesse pela verdade, que continuamentenos faz ir muito além de toda resposta particular.Teologia e filosofia formam nisso uma peculiar dupla de gêmeos, na qual nenhuma dasduas pode ser totalmente descolada da outra e, no entanto, cada uma deve conservar aprópria tarefa e a própria identidade. É mérito histórico de S. Tomás de Aquinofrente à resposta diferente dos Padres, causada por um outro contexto histórico deter evidenciado a autonomia da filosofia e, com ela, o direito e a responsabilidadepeculiares da razão que se interroga com base em suas próprias forças.Diferenciando-se das filosofias neoplatônicas, nas quais religião e filosofiaestavam inseparavelmente entrelaçadas, os Padres tinham apresentado a fé cristã comoa verdadeira filosofia, salientando também que esta fé corresponde às exigências darazão em busca da verdade; que a fé é o "sim" à verdade, comparada com as religiõesmíticas, que tinham se tornado simples tradições. Mas depois, no momento em que auniversidade nasceu, não existiam mais no Ocidente aquelas religiões, somente ocristianismo, eassim era preciso salientar de uma nova forma a responsabilidade própria da razão,que não é absorvida pela fé. Tomás se encontrou num momento privilegiado: pelaprimeira vez, os escritos filosóficos de Aristóteles eram acessíveis na suaintegralidade; estavam presentes as filosofias hebraica e árabe, como apropriações edesenvolvimentos específicos da filosofia grega. Deste modo, o cristianismo, numnovo diálogo com a razão dos outros, teve de lutar pela própria razoabilidade. Afaculdade de Filosofia, que até aquele momento era chamada "faculdade dos artistas",por ser apenas uma propedêutica à teologia, torna-se agora uma Faculdadepropriamente dita, um parceiro autônomo da teologia e da fé refletida nela. Nãopodemos nos deter aqui no interessante confronto que derivou disso. Eu diria que aidéia de S. Tomás sobre a relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa nafórmula tirada do Concílio de Calcedônia para a cristologia: filosofia e teologiadevem relacionar-se "semconfusão e sem separação". "Sem confusão" quer dizer que cada uma das duas deveconservar a própria identidade. A filosofia deve permanecer sendo realmente umapesquisa da razão na própria liberdade e na própria responsabilidade; deve ver osseus limites e também, na mesma medida, a sua grandeza e vastidão. A teologia devecontinuar a alimentar-se de um tesouro de conhecimento que ela mesma não inventou,que sempre a supera e que, não sendo nunca totalmente esgotável pela reflexão,justamente por isso sempre provoca de novo o pensamento. Junto ao "sem confusão" éimportante também o "sem separação": a filosofia não recomeça sempre do ponto zerodo sujeito pensante de modo isolado, mas vive no grande diálogo da sabedoriahistórica, que ela criticamente e, ao mesmo tempo, docilmente sempre acolhe edesenvolve de novo; mas também não deve se fechar diante do que as religiões e, emparticular, a fé cristã, receberam e doaram à humanidade como indicação do caminho.Várias coisas ditaspelos teólogos no decorrer da história, ou até mesmo praticadas pelas autoridadeseclesiais, foram demonstradas falsas pela história e hoje nos envergonham. Mas, aomesmo tempo, é verdade que a história dos santos, a história do humanismo crescidona base da fé cristã, demonstra a verdade desta fé no seu núcleo essencial,tornando-a assim também uma instância para a razão pública. É verdade, muito do quea teologia e a fé dizem só pode ser feito no interior da fé, e portanto não pode serapresentado como exigência para aqueles para os quais a fé permanece inacessível.Mas também é verdade que a mensagem da fé cristã não é nunca uma mera "comprehensivereligious doctrine", no entender de Rawls, e sim uma força purificadora para aprópria razão, que a ajuda a ser mais ela mesma. A mensagem cristã, com base em suaorigem, deveria ser sempre um encorajamento à verdade e, por isso mesmo, uma forçacontra a pressão do poder e dos interesses.Pois bem, até agora só falei da universidade medieval, procurando porém deixartransparecer a natureza permanente da universidade e da sua missão. Nos temposmodernos descortinaram-se novas dimensões do saber, que na universidade sãovalorizadas principalmente em dois grandes âmbitos: em primeiro lugar, nas ciênciasnaturais, que se desenvolveram com base na conexão entre a experimentação e apressuposta racionalidade da matéria; em segundo lugar, nas ciências históricas ehumanísticas, nas quais o homem, perscrutando o espelho de sua história e iluminandoas dimensões de sua natureza, procura compreender melhor a si mesmo. Nestedesenvolvimento, foi aberta à humanidade não somente uma medida imensa de saber e depoder; cresceram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e dadignidade do homem, e por isso só podemos estar agradecidos. Mas o caminho do homemnunca pode dizer-se já completado, e o perigo de cair na desumanidade nunca estásimplesmente esconjurado: podemosvê-lo e como! no panorama da história atual. O perigo do mundo ocidental para falarsomente dele é que hoje o homem, justamente em consideração da grandeza do seu sabere poder, se renda diante da questão da verdade. E isso significa ao mesmo tempo quea razão, no final, sucumbe ante as pressões dos interesses e do atrativo dautilidade, obrigada a reconhecê-la como critério último. Isso, do ponto de vista daestrutura da universidade, é o mesmo que dizer que há o perigo que a filosofia, nãose sentindo mais capaz da sua verdadeira tarefa, se degrade em positivismo; que ateologia, com sua mensagem à razão, fique confinada na esfera privada de um grupomais ou menos grande. Mas se a razão ciosa da sua suposta pureza fica surda à grandemensagem que vem da fé cristã e da sua sabedoria, torna-se árida como uma árvorecujas raízes já não tocam as águas que lhe dão vida. Perde a coragem para a verdadee deste modo não se torna maior, mas pequena. Aplicando isso à nossa culturaeuropéia,significa: se ela pretende apenas se autoconstruir baseada na espiral das própriasargumentações e no que de momento a convence e ciosa de sua laicidade se desvinculadas raízes pelas quais vive, então não se torna mais racional e mais pura, mas sedecompõe e se fragmenta.Com isso volto ao ponto de partida. O que tem a fazer ou a dizer o Papa nauniversidade? Certamente, não deve procurar impor aos outros de modo autoritário afé, que só pode ser doada em liberdade. Indo além do seu ministério de Pastor daIgreja e com base na natureza intrínseca deste ministério pastoral, é tarefa sua ade manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão apôr-se em busca do que é verdadeiro, do bem, de Deus, e, neste caminho, solicitarque ela aproveite as luzes tão úteis surgidas ao longo da história da fé cristã e aperceber assim Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda e encontrar ocaminho para o futuro.

Do Vaticano, 17 de janeiro de 2008

BENEDICTUS XVI

Wednesday, January 02, 2008

Texto que publiquei recentemente

1. Porquê a ciência, se tenho Deus? A questão da relação entre ciência e religião interessa-me desde há muito tempo, mas devo confessar que não é fácil encontrar pessoas que do lado da religião tenham suficiente informação sobre a ciência, e vice-versa. Mesmo da parte das elites cristãs, como são os teólogos, não é fácil encontrar pessoas que não só estejam informadas sobre os dados científicos, mas que também compreendam, sem desnecessárias ansiedades, as implicações que esses dados poderão ter para a própria teologia. O heliocentrismo defendido por Copérnico e Galileu teve enormes, para não dizer devastadoras, implicações na teologia cristã: destruiu completamente o universo medieval. E isso foi uma "bênção" para a teologia. Sem a revolução copernicana, e toda a revolução cosmológica subsequente, ainda estaríamos hoje a acreditar que o empíreo, a habitação de Deus, dos anjos e dos santos, estava situado por detrás da esfera das estrelas fixas! O evolucionismo proposto por Charles Darwin tem consequências ainda maiores. Contemporaneamente, as ciências cognitivas lançam novos desafios à compreensão do ser humano e da sua experiência religiosa. A teologia só tem a ganhar se levar a sério estes novos dados que lhe vêm da ciência. Os teólogos não se poderão limitar a achar interessantes as teorias científicas, como se não tivessem de as estudar e levar a sério enquanto teólogos. A teologia deve retirar das teorias científicas suficientemente fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico e na autocompreensão que o cristianismo tem de si mesmo. De outra forma, os teólogos poderão estar a fazer um discurso cada vez mais irrelevante.

2. Cristianismo e evolucionismo. O evolucionismo constitui uma aquisição científica da humanidade. As suas implicações filosóficas, éticas e religiosas são imensas. Isto cria um estado de alta ansiedade em muitos crentes, não apenas cristãos. Pude constatar isto mesmo no decorrer de um congresso sobre ciência e religião em que participei, na Universidade Médica de Teerão (2006). Os fundamentalismos correspondem objectivamente a altos estados de ansiedade em quem acredita que todas as proposições religiosas são intocáveis, e em quem se vê de súbito confrontado com a necessidade de introduzir modificações nessas proposições. Tentativas de deixar tudo na mesma como o criacionismo e o intelligent design, são formas inadequadas de lidar com altos estados de ansiedade provocados pelo evolucionismo. João Paulo II aceitou formalmente o evolucionismo não apenas como uma hipótese mas como uma teoria com suficiente evidência. Mas as implicações teológicas do novo paradigma têm sido muito pouco explicitadas, precisamente porque levam a introduzir alterações no discurso teológico para as quais poucos teólogos estão preparados. Teilhard de Chardin (1881-1955) explicitou corajosa e lucidamente essas implicações. Para ele, o evolucionismo não só é aceitável como deve levar a teologia cristã a um repensamento profundo do seu discurso sobre a origem da vida e até mesmo sobre a concepção de Deus. Deus deixa de ser o imutável e absolutamente transcendente para se tornar num Deus cuja história intersecta a do universo e da humanidade e, por que não, a história de todas as “humanidades” que existirão nos inúmeros planetas habitados por esse universo fora! E, por que não dizer, por esses universos fora? Também o teólogo Karl Rahner (1904-1984) procurou compreender o que muda no cristianismo tendo em conta o evolucionismo. Contudo, ainda hoje para muitos cristãos, a origem do mundo e da humanidade é a que vem descrita no Génesis, literalmente interpretado. Esta, porém, não é a posição de um cristianismo amadurecido no contacto com a ciência contemporânea e com um método actualizado de interpretação da Bíblia.

3. Ler a Bíblia hoje. A interpretação da Bíblia tem conhecido mudanças significativas desde o século XIX, mas a leitura abstracta e literal de passagens que devem ser lidas contextual e, por vezes, metaforicamente, é ainda praticada por muito poucos. Tanto o criacionismo, como a afirmação repetidamente feita pelos críticos do cristianismo acerca do carácter sanguinário do Deus do Antigo Testamento, por exemplo, baseiam-se numa leitura do texto bíblico que já pertence à história. Não há um conceito de Deus no Antigo Testamento, mas vários. Os livros que compõem o Antigo Testamento não constituem um curso sistemático de teologia, mas a interpretação que o povo judeu fez da sua história a partir da crença num Deus único. Quando venciam e destroçavam outros povos, os judeus só podiam concluir que esse Deus estava com eles e lhes ordenava que destruíssem os seus adversários. Mas isso não significa de modo algum que devamos tomar essa interpretação como correspondente ao facto de Deus ser tão sedento de sangue, de destroços e de despojos quanto o povo judeu.

4. Imagens incorrectas do cristianismo. Uma ideia muito divulgada entre os críticos da religião em geral e do cristianismo em particular é a de que os crentes se consideram possuidores de uma visão total, coerente e integrada de Deus, do universo e da vida, não tendo portanto quaisquer dúvidas sobre o quer que seja, e que se alguma dúvida surge, ela é prontamente resolvida pelos padres e pelos teólogos; os crentes acreditam em dogmas rigidamente formulados e que não podem ser discutidos criticamente na sua formulação; a crença religiosa é uma questão de se aceitar cegamente até mesmo o que é absurdo, porque foi revelado por Deus; a religião alimenta-se de milagres, de crenças bizarras; etc., etc. Devo dizer que não me reconheço minimamente em tais caricaturas do cristianismo apresentadas em livros, artigos e textos vários cuja publicação se tem recentemente multiplicado, também neste blog. Considero além disso que, objectivamente, estas caricaturas não correspondem à realidade do desenvolvimento histórico do cristianismo nem à sua actualidade. Os cristãos não sabem tudo, as dúvidas são elementos integrantes da crença religiosa, e o espírito crítico é fundamental para que a religião não caiam no dogmatismo fundamentalista ou na superstição. Além disso, os tradicionais dualismos como natural/sobrenatural, imanente/transcendente, este mundo e o outro, etc., tradicionalmente relacionados com a crença religiosa, exprimem mal, a meu ver, a autocompreensão do cristianismo.

5. A experiência religiosa não se fundamenta em qualquer demonstração da existência de Deus. As razões pelas quais uma pessoa tem uma crença religiosa podem ser muito diversas, mas não são imunes a uma análise crítica. Por outro lado, é evidente que, como afirmou Desidério Murcho neste blog, as convicções religiosas não constituem qualquer prova da existência de Deus. Mas a variedade das experiências religiosas também não constituem uma prova da não existência de Deus. Por outro lado, pode-se sempre perguntar a um crente se a sua crença não será uma ilusão. Vivo numa comunidade de formação de 18 jovens, futuros padres jesuítas, actualmente a estudarem filosofia. Na sua maioria têm cursos universitários, alguns têm experiência profissional e até mesmo de namoro, anteriores à decisão de serem padres. O que os levou a escolher a vida religiosa e o sacerdócio? Os seus percursos são diferentes. Mas todos fizeram um dia, e continuam a fazer, a experiência profunda de uma relação pessoal e intensa com Jesus Cristo. Poderão estar todos iludidos? A relação pessoal e profunda com Cristo tem muito a ver com a experiência de uma paixão amorosa. As paixões vivem-se intensamente. Mas não se pode considerar experiência religiosa toda e qualquer experiência dita “sobrenatural” ou “transcendente”. A experiência religiosa tem que se colocar no contexto de vida das pessoas, para ser avaliada criticamente. A experiência religiosa de alguém que se sente interiormente sereno ou serena por causa da sua relação com Deus e, ao mesmo tempo, responsável por colaborar com os outros, crentes e não crentes, na construção de uma sociedade mais justa e humana, até mesmo com sacrifício da própria vida, é muito diferente da experiência “religiosa” de quem se fecha em si mesmo, proclamando obsessivamente ter visões, aparições, ou algum estatuto religioso especial. Ou de quem afirma ter uma experiência mística sob a estimulação do lobo temporal. É evidente que há pessoas que se sentem interiormente serenas e dão a vida pelos outros, afirmando não terem qualquer relação com Deus. O altruísmo tem uma base biológica e revela-se vantajoso para a sobrevivência das espécies, em particular do género humano. Mas a experiência religiosa não se opõe ao património de altruísmo que é fruto da evolução biológica e cultural, apenas lhe aumenta o sentido.
6. A impossibilidade de provar Deus. Não é possível provar que Deus existe nem que não existe. A impossibilidade desta prova faz-se pelo método de redução ao absurdo. Suponhamos que é possível a prova, seja da existência, seja da não existência de Deus. Isso implica que para a produzir, teremos de recorrer a uma linguagem, a humana, que se aplica apenas aos seres e fenómenos do universo espaciotemporal em que vivemos. Mas então, qualquer demonstração que se produza com recurso a uma tal linguagem só pode ter a ver com a existência ou a não existência espaciotemporal de algo ou alguém, o que não é o caso de Deus, visto que Deus não é concebido como um ser espaciotemporal. É, pois, absurdo querer demonstrar o quer que seja acerca de um ser que não é espaciotemporal, quer a sua existência, quer a sua não existência, recorrendo a uma linguagem que se aplica ela mesma apenas nos limites espaciotemporais. Logo, não é possível produzir a prova que procurávamos.
7. Quem causou Deus? Pergunta-se por vezes pela causa de Deus. Depois de Hume, muitos não aceitam o princípio de causalidade. E mesmo entre os que o aceitam, poucos há que o apliquem ao universo. O universo pode não ter tido uma causa. Mas se o universo, sem Deus, não tem uma causa, por que deveria Deus, se existe, ter uma causa?8. Ciência e religião: uma convergência ecológica. Finalmente: Edward Wilson afirma no seu recente livro A Criação, que a relação entre ciência e religião se pode colocar ao nível metafísico, mas que ela se pode também colocar ao nível da colaboração recíproca para a salvação do nosso planeta e da vida que nele existe e, neste segundo sentido, essa relação é não só menos complexa que no sentido metafísico, como também mais frutuosa. Concordo inteiramente com esta posição e é por isso que não posso deixar de me surpreender com a posição extremista de Richard Dawkins, que não vê na religião senão desvantagens para a humanidade.

Wednesday, December 12, 2007

Texto que publiquei no Jornal de Notícias no passado domingo 9 de Dezembro:

Vai a Igreja agir?
Alfredo Dinis
O texto da recente mensagem do Papa aos bispos portugueses tem sido interpretado de diversas formas. Muitos comentadores têm sublinhado o carácter crítico do texto papal em relação à Igreja portuguesa. Outros, incluindo os próprios bispos, vêem naquele texto um encorajamento que receberam para continuar um caminho de inovação que sempre desejaram percorrer, mas que encontra não poucos obstáculos.
Independentemente das diferenças de leitura do texto, todos parecem estar de acordo com um facto os cristãos portugueses - leigos, bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas -, não podem continuar a trilhar simplesmente os caminhos do passado, a manter acriticamente as tradições dos seus antepassados simplesmente por serem tradições, a investir tempo, energias e dinheiro em manifestações de religiosidade que tocam quase só a esfera emocional, devocional e intimista, mas deixam intocada a dimensão da responsabilização pela transformação do Mundo, uma responsabilização que torne insuportável a existência da injustiça, da discriminação, da pobreza e da mentira.
Algumas pessoas começaram já a perguntar vai tudo ficar na mesma, depois do discurso do Papa? Vai a Igreja agir? Quem vai fazer alguma coisa para que alguma coisa mude, realmente? Serão apenas os bispos? Serão apenas os padres? Se assim fosse, estaríamos a contradizer o Papa, que pede um maior envolvimento dos leigos na vida da Igreja. Há pois que fazer uma reflexão comunitária séria sobre a Igreja que somos e sobre a Igreja que queremos ser. Há decisões a tomar. Há mudanças que é urgente fazer. Há questões que não devemos recear levantar, pelas quais nos devemos deixar desafiar permanentemente.
Por exemplo:- qual o espaço que pertence aos leigos na Igreja e que estes ainda não ocuparam? Que obstáculos existem que impedem a sua participação mais activa nas igrejas locais?- o que é preciso mudar na mentalidade dos actuais padres e na formação dos futuros padres?- em que medida a actual falta de padres é reveladora da necessidade de um novo modelo de Igreja?- será adequada a actual educação cristã das crianças e dos jovens?- qual o lugar e a voz dos jovens nas comunidades cristãs?- o que deve ser mudado na actual estrutura da Igreja, nomeadamente ao nível paroquial?- que sentido têm nos dias de hoje as diferentes formas de vida religiosa? Em que devem mudar?- o que há a mudar nas celebrações litúrgicas?- o que deve ser mudado em celebrações tão importantes como são o Natal e a ressurreição de Cristo, para que tenham impacto na vida real das pessoas e das comunidades?- como deve ser encarada construtiva, mas criticamente, a religiosidade popular?- o que devem fazer os cristãos para se empenhar a sério no diálogo com a cultura do nosso tempo, fortemente marcada pela Ciência e pela Tecnologia?- como se responsabilizam os cristãos na transformação profética de uma sociedade onde se encontra tanta injustiça, pobreza e mentira? Como entendem a sua participação activa na vida política, no desmascaramento do política e socialmente correcto?- de que forma poderão os cristãos empenhar-se mais apaixonadamente nas grandes causas da Humanidade na sua luta contra a discriminação da mulher e das minorias, contra o economicismo, por soluções urgentes da questão ecológica, do subdesenvolvimento de tantos povos?- qual a função dos teólogos na vida da Igreja em geral e das comunidades cristãs, em particular? O que podemos esperar deles? O que devemos pedir-lhes? O que deve mudar na teologia?
Estas são apenas algumas das questões sobre as quais é urgente reflectir e agir, sob pena de o cristianismo se tornar cada vez mais um conjunto de crenças sem consequências na vida real das pessoas e das comunidades, e sem relevância para a construção de uma sociedade mais humana.* Padre Jesuíta e director da Faculdade de Filosofia de Braga


Saturday, November 03, 2007

estes dualismos que nos perseguem...

Até que ponto os dualismos que utilizamos para pensar e ‘arrumar o(s) nosso(s) mundo(s) correspondem a realidades igualmente duais ou não passam de formas de entendermos o mundo e nos entendermos quando comunicamos? Correspondem apenas a uma realidade construída pelos seres humanos por uma questão prática ou de conveniência, ou correspondem a alguma realidade objectiva que se nos impõe? Poderemos dispensar esses dualismos? Se não, porquê? Se sim, com que consequências?

Às quartas-feiras, das 18h às 19h, encontrar-se-ão na Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa quantos estiverem interessados nos debates que constituem um Seminário intitulado 'estes dualismos que nos perseguem'. Antes de cada encontro, poderá ser colocado no blog www.dualismos.blogspot.com um texto que estimule o interesse e a discussão que continuará depois no local dos encontros. Quem não puder estar presente poderá sempre entrar nos debates através do blog.

CORPO-ALMA O primeiro encontro do Seminário estes dualismos que nos perseguem terá lugar no próximo dia 14 na Faculdade de Filosofia, das 18h às 19h. Corpo-alma é o primeiro dualismo em análise. Alfredo Dinis, que animará o debate em torno deste dualismo deixa aqui um texto de Joseph Ratzinger retirado da obra Introdução ao Cristianismo, que servirá de referência para a reflexão, e sobre o qual se poderão desde já tecer considerações neste blog, as quais serão tidas em conta durante o debate.

"A concepção grega parte do princípio de que o ser humano é formado por duas substâncias originalmente estranhas entre si, sendo uma (o corpo) perecível e a outra (a alma) imperecível, de modo que esta última continua a existir independentemente de qualquer outro ser. Na realidade, só a separação do corpo, que lhe é estranho, abriria à alma a possibilidade de ser ela mesma. O raciocínio bíblico, pelo contrário, pressupõe a unidade indivisa do ser humano, tanto assim que a Bíblia nem tem uma palavra para designar apenas o corpo (separado e distinto da alma); por outro lado, o termo ‘alma’refere-se, na grande maioria dos casos, ao ser humano inteiro, tal como ele existe com a sua corporalidade (…)A imortalidade não é fruto da evidente impossibilidade do ser indivisível para morrer, mas sim da acção salvadora do amante que tem o poder para o fazer: o ser humano já não pode findar totalmente, porque é conhecido e amado por Deus. Se todo o amor aspira à eternidade, o amor de Deus não só aspira a ela, como cria e é a eternidade (…)Ao contrário da concepção dualista da imortalidade, que encontra a sua expressão no esquema grego do corpo e da alma, a fórmula bíblica da imortalidade pretende transmitir uma ideia dialogal que abrange o ser humano como um todo: a essência do ser humano, a pessoa, continuará a existir; aquilo que amadureceu durante a existência terrena de espiritualidade corporificada e de corporalidade espiritualizada continuará a existir de outra maneira. E a sua existência prossegue porque vive na memória de Deus (…)‘Ter alma espiritual’ quer dizer exactamente ser querido, conhecido e amado de modo especial por Deus; ter alma espiritual significa ser-se alguém que é chamado por Deus para um diálogo eterno e que, por isso, é capaz, por sua vez, de conhecer Deus e de lhe responder. Aquilo a que, numa linguagem mais substancialista, chamamos ‘ter alma’, passamos a chamar, numa linguagem mais histórica e actual, ‘ser interlocutor de Deus’.(…)De resto, neste ponto mostra-se claramente que é impossível, em última análise, fazer uma distinção clara entre ‘natural’ e ‘sobrenatural’.Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo,São João do Estoril: Principia, 2005, pp. 254-260.

Sunday, December 10, 2006

No passado mês de Setembro submeti à Fundação para a Ciência e a Tecnologia uma Projecto de Investigação na área das relações entre ciência e religião. É esse Projecto que deixo aqui, enquanto espero a oportunidade de o defender perante um júri internacional.


Project leader Alfredo de Oliveira Dinis

Título do projecto

SCIENTIA ET SAPIENTIA-a interacção entre ciência e religião no contexto do desenvolvimento económico, político, e tecnológico, e das preocupações ecológicas e de desenvolvimento sustentável, nas sociedades contemporâneas, particularmente na Europa.

Project title

SCIENTIA ET SAPIENTIA - the interplay between science and religion in the context of economic, political and technological developments, and of sustained development and ecological concerns, in contemporary societies, particularly in Europe.

Resumo (em português)
Abstract (in portuguese)

O Projecto pretende promover um debate interdisciplinar e inter-cultural sobre as profundas e rápidas mudanças que sobretudo desde o final da segunda grande guerra têm influenciado a configuração das sociedades contemporâneas, particularmente no ocidente. Um ponto fundamental da investigação tem a ver com a inter-relação entre ciência, tecnologia e religião, sobretudo a partir das descobertas revolucionárias em biologia, desde o século XIX, em física e em astrofísica desde o início do século XX, e em ciências cognitivas desde meados do mesmo século. Esta inter-acção será analisada num contexto cultural mais vasto que inclui as dimensões económica, política, tecnológica, ecológica e social (sobretudo no que se refere aos problemas de género e de convivência inter-racial). O carácter multicultural da Europa é igualmente um elemento importante no contexto desta investigação. Também as implicações ecológicas dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos serão analisadas tendo em conta a atitude das grandes religiões, sobretudo o Cristianismo e o Islão, perante a preservação do ambiente.

Tanto o Cristianismo como o Islão convivem mal com diversos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, particularmente os que se referem ao evolucionismo biológico, à biotecnologia e às ciências cognitivas, havendo, por outro lado, em alguns sectores a tentação de aceitar a revolução quântica em favor de uma visão religiosa do mundo. Trata-se de uma situação que merece uma análise cuidadosa.

Uma das razões pelas quais se pretende ter em especial consideração as posições religiosas de duas das maiores religiões monoteístas é o facto de o Cristianismo e o Islão terem tido no passado e continuarem a ter no presente uma influência notável na evolução de diversas sociedades, incluindo a sociedade Europeia. Por outro lado, tem-se em conta o facto de a possível entrada na Comunidade Europeia da Turquia, um país islâmico, gerar receios de vária ordem. Esta situação não tem suscitado em Portugal um interesse significativo, pretendendo-se por isso activar o debate em torno destas questões. Por isso mesmo se procurou integrar no Projecto investigadores de outros países, incluindo um muçulmano, da Turquia, e uma muçulmana, do Irão. O Prof. Bulent Senay, doutorado, é o coordenador de um de um grupo de investigação da Faculdade de Teologia da Universidade de Uludag (Bursa, Turquia) intitulado “Simurgh Society for Knowledge, Culture and Research”. Este investigador é também docente de matérias como ‘O Islão no mundo moderno’, ‘A ciência na história do Islão’ e ‘Religião e Ecologia’. A Profª Shiva Khalili é Presidente do Departamento de Ciência e Religião, do Centro Nacional de Investigação em Ciências Médicas, de Tehrão.
O outro parceiro do Projecto é um grupo de investigadores da Universidade de Comillas (Madrid) intitulado “Cátedra Ciencia Technología y Religión”. São coordenadores os Profs. Javier Leach e Javier Monserrat, ambos doutorados e docentes nas áreas das ciências naturais e do diálogo ciência-religião. Actualmente, o grupo está particularmente interessado em analisar o impacto do evolucionismo biológico no Cristianismo.
Em Portugal, tanto instituições como as Faculdades de Teologia e de Ciências, como os investigadores individuais nestas áreas, não se têm interessado em aprofundar o impacto que as revoluções acima mencionadas têm tido em décadas mais recentes nas concepções e práticas religiosas no contexto das sociedades contemporâneas. O Projecto pretende encorajar esse debate integrando-o na discussão e busca de soluções para os problemas de vária ordem que se colocam hoje à construção de uma Europa unida e a um processo de globalização que promova a justiça e a tolerância cultural. Só deste modo a ciência aliada à sabedoria poderá conviver com as religiões, e vice-versa.
Os membros do Projecto tencionam organizar seminários, conferências e colóquios, quer a nível nacional, quer internacional, publicar os textos relativos a essas iniciativas e ainda produzir documentários em vídeo que possam servir de apoio a acções de formação cívica e de debates em escolas e outras instituições culturais. Estas acções têm, além do mais, um acentuado carácter de divulgação científica, uma vez que serão analisadas com algum pormenor os aspectos mais importantes das várias revoluções científicas e tecnológicas.

É importante salientar que a equipa portuguesa de investigação é composta por dois doutores e um mestre na área da Filosofia da Ciência, um doutor e um mestre na área da Psicologia, um doutor e um mestre na área da Física Teórica, e um doutor em Teologia.

Resumo (em inglês)

Abstract (in english) The Project aims to promote an interdisciplinary and intercultural dialogue on the profound and quick changes that, especially since the end of world war II, have influenced the evolution of contemporary societies, mainly in the western world. A key point in the research to be carried out has to do with the inter-relation among science, technology and religion, mainly after the revolutionary discoveries in biology since the XIXth century, and in physics since the beginning of last century. This interaction will be analysed within a wider, cultural context, that includes the economic, political, technological, ecological and social concerns (mainly as to inter-racial and gender problems). The multicultural characteristic of Europe is also an important element in the context of the research. The ecological implications of scientific and technological developments will also be analysed taking into account the attitude of the major religions, mainly Islam and Christianity as to the ecological concerns. Both Christianity and Islam have dealt badly with some scientific and technological developments, particularly those that have to do with biological evolutionism, biotechnology and the cognitive sciences. On the other hand, attempts have been made to accept the quantic revolution as favouring a religious world view. Thus an analysis of this situation is quite necessary. One of the reasons why a special attention will be paid to the religious views of these two major religions is the fact that both have had in the past, and continue to have in the present, a considerable influence in the evolution of many societies, including the European society. Another reason is the fact that Turkey will probably join the European Community, an Islamic although secularised country, raising actually some concerns in many Europeans. The Portuguese have paid little attention to this situation, and the Project aims to promote a much needed debate. For this reason, an effort has been made to have the contribution of researchers from other countries. One of them is precisely Turkey. Prof. Bulent Senay, Ph.D., coordinates a research group at the Faculty of Theology of Uludag University (Bursa, Turkey) titled “Simurgh Society for Knowledge, Culture and Research”. This scholar teaches courses on issues such as Islam in the modern world, Science in Islamic History, and Religion and Ecology. The other partner in the Project is a group of researchers of the Spanish University of Comillas and the Complutense University (both in Madrid). The group coordinators are Profs. Javier Leach, Ph.D. and Javier Monserrat,Ph.D. They lecture in the areas of the natural sciences and of the dialogue between science and religion. The group is now analysing the impact of biological evolutionism on Christianity. In Portugal both institutions like Faculties of Theology and Faculties of Science, and the individual researchers in these areas, have had little interest in the analysis of the impact that the major scientific revolutions have had in recent decades on the religious views and practices of people within the context of contemporary societies. The Project aims to encourage this debate as part of the discussion and the search for solutions to the different problems that both the construction of a united Europe, and a process of globalisation that will promote justice and cultural tolerance are facing today. The Project members intend to organize seminars, conferences and congresses, at both national and international level; to publish the relevant texts related to these initiatives; and to produce video documentaries that may support debates in schools and in other cultural institutions. It worth noticing that these initiatives correspond also to a major concern as to the spread of scientific knowledge, since the several scientific and technological revolutions will be analysed with some detail.

It is important to point out that the Portuguese research team includes three members in the area of philosophy of science (2 with a Ph.D. and one with a Master degree), two in the area of theoretic physics (one with a Ph.D. and another with a Master degree), one in theology with a Ph.D., and one in the area of psychology (actually preparing to begin reading for the Ph.D.).

Descrição dos Objectivos do Projecto

Project Objectives (description) 1. The Project aims to identify major consequences that some of the main scientific and technological revolutions –evolutionist, quantic, astrophysic, cognitive and biotechnological- have in the present upon both cultural changes in general, and upon the changes in the theological views of the eastern and western major religious traditions, in particular. Scientific knowledge of those revolutions will be provided.
2. An attempt will be made to understand how two of the major religions, Christianity and Islam, are facing the scientific and technological challenges, and the ecological problem, racial tolerance and other social issues. Knowledge of the main aspects of Christianity and Islam will be provided.
3. A special attention will be paid to the impact of contemporary science and technology, together with the main religions, especially Christianity and Islam, in the shaping of contemporary societies, paying a special attention to the European society, taking also into account the possibility of Turkey becoming a member of the European Community.

4. The Project aims to foster a dialogue between scientists, theologians and the general public.

Descrição dos Objectivos do Investigador Responsável

Principal Investigator Objectives (description) The personal objectives of the Principal Investigator are: first, to understand whether it is possible for the main religions to face the challenges of scientific and technological progress; second, to understand how changes in the economic and political activity determine the way people in that society think and act, also at the level of religious beliefs and practices; third, how science and religion may help people to face with wisdom the many problems of contemporary societies; fourth to confront his own views with those of other researchers, national and international; and fifth, to encourage a serious dialogue about the present situation of contemporary societies and bring the discussion to the students and to the general public.

Descrição do Estado da Arte

State of the Art (description) Recent studies on the evolution of systems of values in societies with different levels of economic and political developments both in Europe (European Values Study, European Social Survey and Eurobarometer) and throughout the world (World Values Survey,) have emphasized how in advanced societies these developments are eroding religious values and the trust in traditional religious beliefs and institutions. A good number of studies have been published that examine the data that are being collected, and propose theories that allows such data to make sense. They show, for example, that there may be little relation between religious beliefs and the acceptance of technological developments even in the case that they may have unwelcomed consequences as in the case of genetically modified plants. Ronald Inglehart is one of the major authors that coordinate the both the surveys and the analyses of the data they provide. The main studies published so far are mentioned in the bibliography of the Project.
At the same time, however, two of the main monotheistic religions, namely Christianity and Islam, seem to resist, sometimes with violence, to such erosion, and they appear as strong as ever. Particularly in the United States, some radical Christians oppose the teaching of Darwinism in their schools, based on a recent trend called Intelligent Design. And throughout the world many Christians continue to oppose some technological developments especially in the field of bioethics and biotechnology in general.
On the other hand, radical Muslims consider violence as a legitimate mean to strengthen their influence in the world. They have also problems in accepting some developments in contemporary technology and science, including Darwinism and the more recent developments in the cognitive sciences.
As the process of globalisation unfolds, a clash between religious beliefs and institutions, from the one side, and scientific and technological developments, from the other side, may create new tensions and even wars.
While sociologists study the issue from a rather neutral point of view, some wellknown scientists, like Richard Dawkins, and philosophers, like Daniel Dennett, are simply refuting religion on the basis of science. However, Christians like Ian Barbour and John Polkinghorne are trying to understand how science and religion may be partners of a fruitful dialogue that shows how scientia et sapientia may converge. In the Muslim world, science is supposed to be subordinate to the Koran, and the dialogue science-religion has not attract much attention so far.
In this context one may ask what is the best way to face a situation that may create conflicts within the actual multicultural societies. As to Europe, particularly, this is a sensitive issue, not only because there are many Muslims and Christians that appear to live very uncomfortable in a multicultural way of life, but also because Turkey, a Muslim, secularised country has asked to join the European Community. How is it possible for the major religions to face recent developments in technology and science in a positive way? How can they promote a sustainable technological development that is compatible with ecological concerns?
Should scientists fight religion on a scientific basis, or should they dialogue with believers?

How are economic and political developments in the world and particularly in Europe being shaped by he interplay of science, technology and religion? What kind of attitudes are religions fostering today as to crucial issues such as ecology, racial and religious tolerance, and gender?


Divulgação de Resultados (descrição)

Diffusion of Results (description) The results of the findings during the unfolding of the Project will be made public through conferences and articles, and also through a permanent presence in the mass media. In the end, a book with the main texts, and a video documentary will be produced.

Repercussões (descrição)

Repercussions (description) It is expected that the initiatives of the Project contribute to a greater awareness both among the intellectuals and the public in general, of the major problems that contemporary societies are facing, especially due to the interplay of scientific and technological developments, from the one side, and religious beliefs and practices from the other side. Sociological theories that attempt to explain how science, technology and religion interact also with the economic and political dimension will allow people to have a better understanding of the actual dynamics of contemporary societies, of their new problems and of the ways to deal with them with science and wisdom, with scientia et sapientia. Hopefully, scientists will become interested in the discussion of social and religious issues, and theologians become open to face the new challenges of science and technology in changing societies. Hopefully also, the debate will reach the universities and the secondary schools both at the level of teachers and of students, so that a more responsible attitude of citizenship will be promoted, especially in Portugal and in the other countries that are partners of the Project: Spain, Iran and Turkey. It is also expected that people taking part in the several kinds of initiatives will improve their scientific knowledge, since explanations on the nature of several scientific and technological revolutions will be provided.

Saturday, May 20, 2006

De 1 a 4 de Maio participei no Primeiro Congresso International sobre Ciência e Religião na Universidade de Ciências Médicas de Teerão. Apresentei uma comunicação intitulada "Neurosciences and Theology: the ambiguities of Neurotheology". A experiência foi muito positiva. Os intelectuais iranianos com quem contactei foram extremamente amáveis. Convidaram diversos americanos para a comissão científica do congresso e para as mesas redondas, não revelando o mínimo preconceito em relação a eles. Embora tendo como referência fundamental o Corão, mostraram-se extremamente abertos e dialogantes, sem qualquer intenção proselitista. Conhecem os autores da filosofia ocidental e tomam-nos a sério. No Instituto Iraniano de Filosofia, onde participei num workshop nas vésperas do início do congresso, pude ver posters de colóquios ali realizados sobre Descartes, Kant e outros autores clássicos do pensamento ocidental. Esta é a face amável, humana e inteligente do povo iraniano que infelizmente não nos é acessível através dos meios de comunicação. Quando me preparava para iniciar a viagem para Teerão, os meus amigos temiam que a experiência fosse negativa, que eu encontrasse toda a espécie de perigos, que, enfim, acabasse por ser raptado ou algo do género. E no entanto, esta experiência foi para mim tão positiva que regressarei ao Irão na primeira oportunidade.

Thursday, April 13, 2006

Imanência/transcendência e outros dualismos

Quando se discute a relação entre ciência e religião, é frequente que se distingam dois domínios de estudo: a ciência investiga "este mundo", a religião o "outro mundo". A este dualismo outros se podem acrescentar: corpo-alma, matéria-espírito, imanência-transcendência, etc. Estes dualismos estão tão arraigados na cultura ocidental que parece que não podemos passar sem eles. E no entanto há outros modos de expressão que são mais inteligíveis hoje e que permitem ultrapapassar velhas querelas, como as que existem entre materialismo e espiritualismo, reducionismo anti-reducionismo, etc. Um destes outros modos de expressão consiste em abandonar o tradicional paradigma metafísico-substancialista e adoptar um modelo que coloque em primeiro lugar aquilo que constitui os seres humanos como pessoas, isto é, o seu carácter relacional, a radical abertura à comunicação profunda com os outros seres humanos e, para os crentes de alguma religião, com Deus.

No seu livro Introduction to Christianity, Joseph Ratzinger propõe uma perspectiva relacional do conceito de 'alma':

“ ‘having a spiritual soul’ means precisely being willed, known, and loved by God in a special way; it means being a creature called by God to an eternal dialogue and therefore for its own part capable of knowing God and of replying to him. What we call in substancialist language ‘having a soul’ we will describe in a more historical, actual language as ‘being God’s partner in a dialogue’.“ (2004, 355)


Quanto ao dualismo natural-sobrenatural ou imanente-transcendente, encontrei dois textos que têm algo de semelhante, embora um venha da área da ciência, outro da área da religião. Numa obra recente, Are we Spiritual Machines?, Ray Kurzweil, um adepto da inteligência artificial em sentido forte, reage contra a acusação que na mesma obra lhe fazem de ser materialista e de negar a transcendência, afirmando:


“what’s the problem with the so-called material world? Is the world of matter and energy not profound enough? Is it truly necessary to look beyond the world we encounter to find transcendence? … A comment on the word ‘transcendence’ is in order here. To transcend means to ‘go beyond’, but this need not compel us to an ornate dualist view that regards transcendent levels of reality (e.g., the spiritual level) to be not of this world. We can ‘go beyond’ the ‘ordinary’ powers of the material world through the power of patterns. Rather than a materialist, I would rather consider myself a ‘patternist’. It’s through the emergent powers of the pattern that we transcend.” (2002, 211).

Joseph Ratzinger apresenta uma perspectiva algo semelhante em alguns aspectos, concluindo com um conceito relacional de imortalidade.


“when we say that man’s immortality is based on his dialogic relationship with and reliance upon God, whose love alone bestows eternity, we are not claiming a special destiny for the pious but emphasizing the essential immortality of man as man. After the foregoing reflections, it is also perfectly possible to develop the idea out of the body-soul schema, whose importance, perhaps even indispensability, lies in the fact that it emphasizes this essential character of human immortality… it becomes evident once again at this point that in the last analysis one cannot make a neat distinction between ‘natural’ and ‘supernatural’.“ (2004, 355-6)