Monday, January 21, 2008

Alocução do Santo Padre Bento XVI na «La Sapienza”Texto enviado ao reitor da universidadeCIDADE DO VATICANO, domingo, 20 de janeiro de 2008
Texto da alocução que o Santo Padre Bento XVI teria pronunciado no curso da Visita àUniversidade de Estudos "La Sapienza" de Roma, prevista para 17 de janeiro, depoiscancelada em 15 de janeiro de 2008.
Magnífico Reitor,
Autoridades políticas e civis,
Ilustres docentes e pessoal técnico-administrativo,
Caros jovens estudantes!
Para mim é motivo de profunda alegria encontrar a comunidade de "La Sapienza",universidade de Roma, por ocasião da inauguração do ano académico. Desde há séculos,esta Universidade marca o caminho e a vida da cidade de Roma, fazendo frutificar as melhores energias intelectuais em todo campo do saber. Seja no tempo em que, após a fundação querida pelo Papa Bonifácio VIII, a instituição estava em direta dependência da autoridade eclesiástica, seja após isso, quanto o Studium Urbis se desenvolveu como instituição do Estado italiano, a vossa comunidade académica conservou um grande nível científico e cultural, que a coloca entre as mais prestigiosas universidades do mundo. Desde sempre a Igreja de Roma olha com simpatia e admiração para este centro universitário, reconhecendo o seu esforço, tantas vezes árduo e trabalhoso, da pesquisa e da formação das novas gerações. Não faltaram nestes últimos anos momentos significativos de colaboração e de diálogo. Gostaria delembrar, em particular, o Encontro Mundial dos Reitores por ocasião do Jubileu dasUniversidades, que viu a vossa comunidade encarregar-se não só da acolhida e da organização, mas principalmente da proposta profética e complexa da elaboração de"um novo humanismo para o terceiro milênio".Desejo muito, nesta circunstância, expressar minha gratidão pelo convite que me foi dirigido de vir à vossa universidade para vos dar uma aula. Diante desta perspectiva, fiz-me antes de mais nada uma pergunta: o que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha aula em Ratisbona falei, sim, como Papa, mas principalmente falei no meu papel de ex-professor daquela minha universidade,procurando entrelaçar recordações e actualidade. Na universidade "La Sapienza", a antiga universidade de Roma, porém, fui convidado justamente como Bispo de Roma, e por isso devo falar como tal. Certamente, "La Sapienza" foi no passado a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica, com aquela autonomia que,com base em seu próprio conceito fundacional, sempre fez parte da natureza de universidade, a qual deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade. É na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas que a universidade encontra a sua função particular, justamente em vista da sociedade moderna, que precisa de uma instituição desse tipo.Retomo a minha pergunta inicial: o que pode e deve o Papa dizer no encontro com a universidade da sua cidade? Reflectindo sobre essa pergunta, pareceu-me que ela deveria incluir outras duas, cujo esclarecimento poderia levar por si mesmo à resposta. Com efeito, é preciso perguntar: qual é a natureza e a missão do papado? E ainda: qual é a natureza e a missão da universidade? Não quero passar aqui convosco em longas digressões sobre a natureza do Papado. Bastará um breve comentário. O Papa é, antes de mais nada, Bispo de Roma e, como tal, em virtude da sucessão do Apóstolo Pedro, tem uma responsabilidade episcopal que diz respeito a toda a Igreja Católica.A palavra "bispo" episkopos , que no seu significado imediato quer dizer"vigilante", já no Novo Testamento se fundiu com o conceito bíblico de pastor: ele é aquele que, desde um ponto de observação mais elevado, olha o conjunto, velando pelo justo caminho e pela coesão do conjunto. Neste sentido, esta designação do seu papel orienta o olhar principalmente para o interior da comunidade dos fiéis. O Bispo, o Pastor, é o homem que cuida desta comunidade; aquele que a conserva unida, mantendo-a no caminho rumo a Deus, indicado segundo a fé cristã por Jesus e não apenas indicado: Ele mesmo é para nós o caminho. Mas esta comunidade da qual o Bispo cuida pequena ou grande vive no mundo; as suas condições, o seu caminho, o seu exemplo e a sua palavra influem inevitavelmente sobre toda a comunidade humana no seu conjunto. Quanto maior ela for, mais as suas boas condições ou a sua eventual decadência repercutirão no conjunto da humanidade. Vemos hoje, com muita clareza, como as condições das religiões e como a situação da Igreja, as suas crises e as suas renovações agem sobre a humanidade como um todo. Assim, o Papa, justamente como Pastor da sua comunidade,foi-se tornando cada vez mais também uma voz da razão ética da humanidade.Aqui, porém, surge logo a objecção, segundo a qual o Papa, de fato, não falaria realmente com base na razão ética, mas tiraria suas afirmações da fé, e por isso não poderia pretender uma validade das mesmas para os que não compartilham esta fé.Vamos voltar ainda sobre este tema, porque aqui se coloca a questão absolutamente fundamental: o que é a razão? Como pode uma afirmação sobretudo uma norma moral demonstrar-se como "razoável"? Neste ponto, eu gostaria por um momento de comentar brevemente que John Rawls, mesmo negando a doutrinas religiosas em geral o carácter de razão "pública", vê no entanto na sua razão "não-pública" ao menos uma razão que não poderia, em nome de uma racionalidade secularisticamente endurecida, ser simplesmente desconhecida por aqueles que a apoiam. Ele vê um critério desta razoabilidade, entre outros factores, no fato de que essas doutrinas derivam de umatradição responsável e motivada, na qual, ao longo de muito tempo, foramdesenvolvidas argumentaçõesboas o suficiente para apoiar as respectivas doutrinas. Nesta afirmação, parece-meimportante o reconhecimento de que a experiência e a demonstração no decurso de gerações, o fundo histórico da sabedoria humana, são também um sinal da sua razoabilidade e do seu significado perdurável. Frente a uma razão a-histórica que seprocura autoconstruir apenas numa racionalidade a-histórica, a sabedoria dahumanidade como tal a sabedoria das grandes tradições religiosas é de valorizar-secomo realidade que não se pode impunemente jogar no cesto de lixo da história dasidéias.Voltemos à pergunta inicial. O Papa fala como representante de uma comunidade de fé,na qual, durante os séculos de sua existência, foi amadurecendo uma determinadasabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que custodia em si umtesouro de conhecimento e de experiências éticas, que vem a ser importante para todaa humanidade: neste sentido, fala como representante de uma razão ética.Mas agora é preciso perguntar: e o que é a universidade? Qual é o seu papel? É umapergunta gigantesca, à qual, mais uma vez, posso procurar responder somente numestilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que é possível dizer que averdadeira, íntima origem da universidade esteja na fome de conhecimento que éprópria do homem. Ele quer saber o que é tudo o que o circunda. Neste sentido,podemos ver no interrogar-se de Sócrates o impulso do qual nasceu a universidadeocidental. Penso, por exemplo apenas para mencionar um texto na disputa comEutífron, que, diante de Sócrates, defende a religião mítica e sua devoção. A issoSócrates contrapõe a pergunta: "Tu acreditas que entre os deuses existam realmenteuma guerra mútua e terríveis inimizades e combates... Devemos, Eutífron, realmentedizer que tudo isso é verdade?" (6 b c). Nesta pergunta, aparentemente pouco devotaque, porém, em Sócrates derivava de uma religiosidade mais profunda e mais pura, dabusca do Deusrealmente divino , os cristãos dos primeiros séculos reconheceram-se a si mesmos e opróprio caminho. Acolheram a sua fé não num modo positivista, ou como a saída pararesponder a desejos insatisfeitos; eles a entenderam como o fim da névoa da religiãomitológica para dar lugar à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e ao mesmotempo Razão-Amor. Por isso, o questionamento sobre o Deus supremo, assim como sobrea verdadeira natureza e o verdadeiro sentido do ser humano não era para eles umaforma problemática de falta de religiosidade, mas fazia parte da essência do seumodo de ser religiosos. Não precisavam, portanto, dissolver ou deixar de lado oquestionamento socrático, mas podiam, ou melhor, deviam acolhê-lo e reconhecer comoparte da própria identidade a busca afanosa da razão, para chegar ao conhecimento daverdade por inteiro. Deste modo, a universidade podia, até mesmo devia, nascer noâmbito da fé cristã, no mundo cristão.É preciso dar mais um passo. O homem quer conhecer quer verdade. Verdade é,primeiramente, algo ligado ao ver, ao compreender, à theoria, como é chamada pelarazão grega. Mas a verdade nunca é somente teórica. Agostinho, ao fazer a correlaçãoentre as Bem-Aventuranças no Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionadosem Isaías 11, afirmou uma reciprocidade entre a "scientia" e a "tristitia": o merosaber, diz ele, nos deixa tristes. E de fato quem vê e apreende somente tudo o queacontece no mundo, termina por ficar triste. Mas verdade significa mais do quesaber: o conhecimento da verdade tem como meta o conhecimento do bem. Este é tambémo sentido do questionamento socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? Averdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira: é este o otimismo que vive na fécristã, dado que a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, naencarnação de Deus, revelou-se ao mesmo tempo como o Bem, como a própria Bondade.Na teologia medieval houve uma disputa profunda sobre a relação entre teoria epráxis, sobre a justa relação entre conhecer e agir uma disputa que não vamosdesenvolver aqui. De fato, a universidade medieval, com as suas quatro faculdades,apresenta esta correlação. Comecemos com a faculdade que, de acordo com acompreensão da época, era a quarta, a de medicina. Mesmo sendo considerada mais comouma "arte" que como uma ciência, sua inserção no cosmo da "universitas" significavaclaramente que era colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar estavasob a direção da razão e era subtraída ao âmbito da magia. Curar é uma tarefa quecada vez mais requer a simples razão, mas justamente por isso precisa da conexãoentre saber e poder, precisa pertencer à esfera da ratio. Surge inevitavelmente aquestão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e agir na faculdade deDireito. Trata-se de dar uma justa forma à liberdade humana que é sempre liberdadena comunhãorecíproca: o direito é o pressuposto da liberdade, não o seu antagonista. Mas logovem à tona a pergunta: como identificar os critérios que tornam possível umaliberdade vivida em conjunto e servem ao "ser bom" do homem? A esta altura um saltono presente se faz imperioso: é a questão de como poder encontrar uma normativajurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dosdireitos do homem. É a questão que nos ocupa hoje nos processos democráticos deformação da opinião, e que ao mesmo tempo nos angustia como questão para o futuro dahumanidade. Jürgen Habermas exprime, na minha opinião, um vasto consenso dopensamento atual, quando diz que a legitimidade de uma constituição, comopressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação políticaigualitária de todos os cidadãos e da forma razoável na qual os contrastes políticossão resolvidos. Sobre essa "forma razoável", ele faz notar que ela não pode serapenas uma luta por maioriasaritméticas; deve ser caracterizada como um "processo de argumentação sensível àverdade" (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren). A expressão é ótima, mas éalgo muito difícil de transformar em práxis política. Os representantes daquele"processo de argumentação" público são bem o sabemos prevalentemente os partidos,como responsáveis pela formação da vontade política. De fato, eles terãoinelutavelmente como meta principal a consecução de maiorias, e por isso sepreocuparão quase inevitavelmente com os interesses que prometem satisfazer; estesinteresses, contudo, são com muita freqüência particulares, e não servem realmenteao todo. A sensibilidade pela verdade é mais uma vez sufocada sob a sensibilidadepelos interesses. Acho significativo o fato de que Habermas fale da sensibilidadepela verdade como elemento necessário no processo de argumentação política,reinserindo assim o conceito de verdade no debate filosófico e político.Mas então se torna inevitável a pergunta de Pilatos: o que é a verdade? E como podeser reconhecida? Se a isso se responde apelando à "razão pública", como faz Rawls,segue necessariamente outra vez a pergunta: O que é razoável? Como uma razão sedemonstra como razão verdadeira? Em todo caso se torna evidente que, na busca dodireito à liberdade, à verdade da justa convivência, devem ser ouvidas outrasinstâncias além dos partidos e grupos de interesse, sem com isso querer minimamentecontestar a sua importância. Voltamos assim à estrutura da universidade medieval. Aolado do Direito estavam as faculdades de Filosofia e Teologia, às quais era confiadaa pesquisa sobre o ser humano em sua totalidade e, com isso, a missão de manterdesperta a sensibilidade pela verdade. Poderíamos até dizer que este é o sentidopermanente e verdadeiro de ambas as faculdades: ser guardiãs da sensibilidade pelaverdade, não permitir que o homem seja desvinculado da busca da verdade. Mas comoelas podemcumprir essa tarefa? Esta é uma pergunta pela qual é preciso trabalhar sempre denovo, nunca está definitivamente resolvida. Sendo assim, neste ponto nem eu possooferecer propriamente uma resposta, apenas um convite, de prosseguir no caminho comesta pergunta no caminho com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram eprocuraram, com suas respostas e com seu interesse pela verdade, que continuamentenos faz ir muito além de toda resposta particular.Teologia e filosofia formam nisso uma peculiar dupla de gêmeos, na qual nenhuma dasduas pode ser totalmente descolada da outra e, no entanto, cada uma deve conservar aprópria tarefa e a própria identidade. É mérito histórico de S. Tomás de Aquinofrente à resposta diferente dos Padres, causada por um outro contexto histórico deter evidenciado a autonomia da filosofia e, com ela, o direito e a responsabilidadepeculiares da razão que se interroga com base em suas próprias forças.Diferenciando-se das filosofias neoplatônicas, nas quais religião e filosofiaestavam inseparavelmente entrelaçadas, os Padres tinham apresentado a fé cristã comoa verdadeira filosofia, salientando também que esta fé corresponde às exigências darazão em busca da verdade; que a fé é o "sim" à verdade, comparada com as religiõesmíticas, que tinham se tornado simples tradições. Mas depois, no momento em que auniversidade nasceu, não existiam mais no Ocidente aquelas religiões, somente ocristianismo, eassim era preciso salientar de uma nova forma a responsabilidade própria da razão,que não é absorvida pela fé. Tomás se encontrou num momento privilegiado: pelaprimeira vez, os escritos filosóficos de Aristóteles eram acessíveis na suaintegralidade; estavam presentes as filosofias hebraica e árabe, como apropriações edesenvolvimentos específicos da filosofia grega. Deste modo, o cristianismo, numnovo diálogo com a razão dos outros, teve de lutar pela própria razoabilidade. Afaculdade de Filosofia, que até aquele momento era chamada "faculdade dos artistas",por ser apenas uma propedêutica à teologia, torna-se agora uma Faculdadepropriamente dita, um parceiro autônomo da teologia e da fé refletida nela. Nãopodemos nos deter aqui no interessante confronto que derivou disso. Eu diria que aidéia de S. Tomás sobre a relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa nafórmula tirada do Concílio de Calcedônia para a cristologia: filosofia e teologiadevem relacionar-se "semconfusão e sem separação". "Sem confusão" quer dizer que cada uma das duas deveconservar a própria identidade. A filosofia deve permanecer sendo realmente umapesquisa da razão na própria liberdade e na própria responsabilidade; deve ver osseus limites e também, na mesma medida, a sua grandeza e vastidão. A teologia devecontinuar a alimentar-se de um tesouro de conhecimento que ela mesma não inventou,que sempre a supera e que, não sendo nunca totalmente esgotável pela reflexão,justamente por isso sempre provoca de novo o pensamento. Junto ao "sem confusão" éimportante também o "sem separação": a filosofia não recomeça sempre do ponto zerodo sujeito pensante de modo isolado, mas vive no grande diálogo da sabedoriahistórica, que ela criticamente e, ao mesmo tempo, docilmente sempre acolhe edesenvolve de novo; mas também não deve se fechar diante do que as religiões e, emparticular, a fé cristã, receberam e doaram à humanidade como indicação do caminho.Várias coisas ditaspelos teólogos no decorrer da história, ou até mesmo praticadas pelas autoridadeseclesiais, foram demonstradas falsas pela história e hoje nos envergonham. Mas, aomesmo tempo, é verdade que a história dos santos, a história do humanismo crescidona base da fé cristã, demonstra a verdade desta fé no seu núcleo essencial,tornando-a assim também uma instância para a razão pública. É verdade, muito do quea teologia e a fé dizem só pode ser feito no interior da fé, e portanto não pode serapresentado como exigência para aqueles para os quais a fé permanece inacessível.Mas também é verdade que a mensagem da fé cristã não é nunca uma mera "comprehensivereligious doctrine", no entender de Rawls, e sim uma força purificadora para aprópria razão, que a ajuda a ser mais ela mesma. A mensagem cristã, com base em suaorigem, deveria ser sempre um encorajamento à verdade e, por isso mesmo, uma forçacontra a pressão do poder e dos interesses.Pois bem, até agora só falei da universidade medieval, procurando porém deixartransparecer a natureza permanente da universidade e da sua missão. Nos temposmodernos descortinaram-se novas dimensões do saber, que na universidade sãovalorizadas principalmente em dois grandes âmbitos: em primeiro lugar, nas ciênciasnaturais, que se desenvolveram com base na conexão entre a experimentação e apressuposta racionalidade da matéria; em segundo lugar, nas ciências históricas ehumanísticas, nas quais o homem, perscrutando o espelho de sua história e iluminandoas dimensões de sua natureza, procura compreender melhor a si mesmo. Nestedesenvolvimento, foi aberta à humanidade não somente uma medida imensa de saber e depoder; cresceram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e dadignidade do homem, e por isso só podemos estar agradecidos. Mas o caminho do homemnunca pode dizer-se já completado, e o perigo de cair na desumanidade nunca estásimplesmente esconjurado: podemosvê-lo e como! no panorama da história atual. O perigo do mundo ocidental para falarsomente dele é que hoje o homem, justamente em consideração da grandeza do seu sabere poder, se renda diante da questão da verdade. E isso significa ao mesmo tempo quea razão, no final, sucumbe ante as pressões dos interesses e do atrativo dautilidade, obrigada a reconhecê-la como critério último. Isso, do ponto de vista daestrutura da universidade, é o mesmo que dizer que há o perigo que a filosofia, nãose sentindo mais capaz da sua verdadeira tarefa, se degrade em positivismo; que ateologia, com sua mensagem à razão, fique confinada na esfera privada de um grupomais ou menos grande. Mas se a razão ciosa da sua suposta pureza fica surda à grandemensagem que vem da fé cristã e da sua sabedoria, torna-se árida como uma árvorecujas raízes já não tocam as águas que lhe dão vida. Perde a coragem para a verdadee deste modo não se torna maior, mas pequena. Aplicando isso à nossa culturaeuropéia,significa: se ela pretende apenas se autoconstruir baseada na espiral das própriasargumentações e no que de momento a convence e ciosa de sua laicidade se desvinculadas raízes pelas quais vive, então não se torna mais racional e mais pura, mas sedecompõe e se fragmenta.Com isso volto ao ponto de partida. O que tem a fazer ou a dizer o Papa nauniversidade? Certamente, não deve procurar impor aos outros de modo autoritário afé, que só pode ser doada em liberdade. Indo além do seu ministério de Pastor daIgreja e com base na natureza intrínseca deste ministério pastoral, é tarefa sua ade manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão apôr-se em busca do que é verdadeiro, do bem, de Deus, e, neste caminho, solicitarque ela aproveite as luzes tão úteis surgidas ao longo da história da fé cristã e aperceber assim Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda e encontrar ocaminho para o futuro.

Do Vaticano, 17 de janeiro de 2008

BENEDICTUS XVI

Wednesday, January 02, 2008

Texto que publiquei recentemente

1. Porquê a ciência, se tenho Deus? A questão da relação entre ciência e religião interessa-me desde há muito tempo, mas devo confessar que não é fácil encontrar pessoas que do lado da religião tenham suficiente informação sobre a ciência, e vice-versa. Mesmo da parte das elites cristãs, como são os teólogos, não é fácil encontrar pessoas que não só estejam informadas sobre os dados científicos, mas que também compreendam, sem desnecessárias ansiedades, as implicações que esses dados poderão ter para a própria teologia. O heliocentrismo defendido por Copérnico e Galileu teve enormes, para não dizer devastadoras, implicações na teologia cristã: destruiu completamente o universo medieval. E isso foi uma "bênção" para a teologia. Sem a revolução copernicana, e toda a revolução cosmológica subsequente, ainda estaríamos hoje a acreditar que o empíreo, a habitação de Deus, dos anjos e dos santos, estava situado por detrás da esfera das estrelas fixas! O evolucionismo proposto por Charles Darwin tem consequências ainda maiores. Contemporaneamente, as ciências cognitivas lançam novos desafios à compreensão do ser humano e da sua experiência religiosa. A teologia só tem a ganhar se levar a sério estes novos dados que lhe vêm da ciência. Os teólogos não se poderão limitar a achar interessantes as teorias científicas, como se não tivessem de as estudar e levar a sério enquanto teólogos. A teologia deve retirar das teorias científicas suficientemente fundamentadas as implicações que introduzam modificações no próprio discurso teológico e na autocompreensão que o cristianismo tem de si mesmo. De outra forma, os teólogos poderão estar a fazer um discurso cada vez mais irrelevante.

2. Cristianismo e evolucionismo. O evolucionismo constitui uma aquisição científica da humanidade. As suas implicações filosóficas, éticas e religiosas são imensas. Isto cria um estado de alta ansiedade em muitos crentes, não apenas cristãos. Pude constatar isto mesmo no decorrer de um congresso sobre ciência e religião em que participei, na Universidade Médica de Teerão (2006). Os fundamentalismos correspondem objectivamente a altos estados de ansiedade em quem acredita que todas as proposições religiosas são intocáveis, e em quem se vê de súbito confrontado com a necessidade de introduzir modificações nessas proposições. Tentativas de deixar tudo na mesma como o criacionismo e o intelligent design, são formas inadequadas de lidar com altos estados de ansiedade provocados pelo evolucionismo. João Paulo II aceitou formalmente o evolucionismo não apenas como uma hipótese mas como uma teoria com suficiente evidência. Mas as implicações teológicas do novo paradigma têm sido muito pouco explicitadas, precisamente porque levam a introduzir alterações no discurso teológico para as quais poucos teólogos estão preparados. Teilhard de Chardin (1881-1955) explicitou corajosa e lucidamente essas implicações. Para ele, o evolucionismo não só é aceitável como deve levar a teologia cristã a um repensamento profundo do seu discurso sobre a origem da vida e até mesmo sobre a concepção de Deus. Deus deixa de ser o imutável e absolutamente transcendente para se tornar num Deus cuja história intersecta a do universo e da humanidade e, por que não, a história de todas as “humanidades” que existirão nos inúmeros planetas habitados por esse universo fora! E, por que não dizer, por esses universos fora? Também o teólogo Karl Rahner (1904-1984) procurou compreender o que muda no cristianismo tendo em conta o evolucionismo. Contudo, ainda hoje para muitos cristãos, a origem do mundo e da humanidade é a que vem descrita no Génesis, literalmente interpretado. Esta, porém, não é a posição de um cristianismo amadurecido no contacto com a ciência contemporânea e com um método actualizado de interpretação da Bíblia.

3. Ler a Bíblia hoje. A interpretação da Bíblia tem conhecido mudanças significativas desde o século XIX, mas a leitura abstracta e literal de passagens que devem ser lidas contextual e, por vezes, metaforicamente, é ainda praticada por muito poucos. Tanto o criacionismo, como a afirmação repetidamente feita pelos críticos do cristianismo acerca do carácter sanguinário do Deus do Antigo Testamento, por exemplo, baseiam-se numa leitura do texto bíblico que já pertence à história. Não há um conceito de Deus no Antigo Testamento, mas vários. Os livros que compõem o Antigo Testamento não constituem um curso sistemático de teologia, mas a interpretação que o povo judeu fez da sua história a partir da crença num Deus único. Quando venciam e destroçavam outros povos, os judeus só podiam concluir que esse Deus estava com eles e lhes ordenava que destruíssem os seus adversários. Mas isso não significa de modo algum que devamos tomar essa interpretação como correspondente ao facto de Deus ser tão sedento de sangue, de destroços e de despojos quanto o povo judeu.

4. Imagens incorrectas do cristianismo. Uma ideia muito divulgada entre os críticos da religião em geral e do cristianismo em particular é a de que os crentes se consideram possuidores de uma visão total, coerente e integrada de Deus, do universo e da vida, não tendo portanto quaisquer dúvidas sobre o quer que seja, e que se alguma dúvida surge, ela é prontamente resolvida pelos padres e pelos teólogos; os crentes acreditam em dogmas rigidamente formulados e que não podem ser discutidos criticamente na sua formulação; a crença religiosa é uma questão de se aceitar cegamente até mesmo o que é absurdo, porque foi revelado por Deus; a religião alimenta-se de milagres, de crenças bizarras; etc., etc. Devo dizer que não me reconheço minimamente em tais caricaturas do cristianismo apresentadas em livros, artigos e textos vários cuja publicação se tem recentemente multiplicado, também neste blog. Considero além disso que, objectivamente, estas caricaturas não correspondem à realidade do desenvolvimento histórico do cristianismo nem à sua actualidade. Os cristãos não sabem tudo, as dúvidas são elementos integrantes da crença religiosa, e o espírito crítico é fundamental para que a religião não caiam no dogmatismo fundamentalista ou na superstição. Além disso, os tradicionais dualismos como natural/sobrenatural, imanente/transcendente, este mundo e o outro, etc., tradicionalmente relacionados com a crença religiosa, exprimem mal, a meu ver, a autocompreensão do cristianismo.

5. A experiência religiosa não se fundamenta em qualquer demonstração da existência de Deus. As razões pelas quais uma pessoa tem uma crença religiosa podem ser muito diversas, mas não são imunes a uma análise crítica. Por outro lado, é evidente que, como afirmou Desidério Murcho neste blog, as convicções religiosas não constituem qualquer prova da existência de Deus. Mas a variedade das experiências religiosas também não constituem uma prova da não existência de Deus. Por outro lado, pode-se sempre perguntar a um crente se a sua crença não será uma ilusão. Vivo numa comunidade de formação de 18 jovens, futuros padres jesuítas, actualmente a estudarem filosofia. Na sua maioria têm cursos universitários, alguns têm experiência profissional e até mesmo de namoro, anteriores à decisão de serem padres. O que os levou a escolher a vida religiosa e o sacerdócio? Os seus percursos são diferentes. Mas todos fizeram um dia, e continuam a fazer, a experiência profunda de uma relação pessoal e intensa com Jesus Cristo. Poderão estar todos iludidos? A relação pessoal e profunda com Cristo tem muito a ver com a experiência de uma paixão amorosa. As paixões vivem-se intensamente. Mas não se pode considerar experiência religiosa toda e qualquer experiência dita “sobrenatural” ou “transcendente”. A experiência religiosa tem que se colocar no contexto de vida das pessoas, para ser avaliada criticamente. A experiência religiosa de alguém que se sente interiormente sereno ou serena por causa da sua relação com Deus e, ao mesmo tempo, responsável por colaborar com os outros, crentes e não crentes, na construção de uma sociedade mais justa e humana, até mesmo com sacrifício da própria vida, é muito diferente da experiência “religiosa” de quem se fecha em si mesmo, proclamando obsessivamente ter visões, aparições, ou algum estatuto religioso especial. Ou de quem afirma ter uma experiência mística sob a estimulação do lobo temporal. É evidente que há pessoas que se sentem interiormente serenas e dão a vida pelos outros, afirmando não terem qualquer relação com Deus. O altruísmo tem uma base biológica e revela-se vantajoso para a sobrevivência das espécies, em particular do género humano. Mas a experiência religiosa não se opõe ao património de altruísmo que é fruto da evolução biológica e cultural, apenas lhe aumenta o sentido.
6. A impossibilidade de provar Deus. Não é possível provar que Deus existe nem que não existe. A impossibilidade desta prova faz-se pelo método de redução ao absurdo. Suponhamos que é possível a prova, seja da existência, seja da não existência de Deus. Isso implica que para a produzir, teremos de recorrer a uma linguagem, a humana, que se aplica apenas aos seres e fenómenos do universo espaciotemporal em que vivemos. Mas então, qualquer demonstração que se produza com recurso a uma tal linguagem só pode ter a ver com a existência ou a não existência espaciotemporal de algo ou alguém, o que não é o caso de Deus, visto que Deus não é concebido como um ser espaciotemporal. É, pois, absurdo querer demonstrar o quer que seja acerca de um ser que não é espaciotemporal, quer a sua existência, quer a sua não existência, recorrendo a uma linguagem que se aplica ela mesma apenas nos limites espaciotemporais. Logo, não é possível produzir a prova que procurávamos.
7. Quem causou Deus? Pergunta-se por vezes pela causa de Deus. Depois de Hume, muitos não aceitam o princípio de causalidade. E mesmo entre os que o aceitam, poucos há que o apliquem ao universo. O universo pode não ter tido uma causa. Mas se o universo, sem Deus, não tem uma causa, por que deveria Deus, se existe, ter uma causa?8. Ciência e religião: uma convergência ecológica. Finalmente: Edward Wilson afirma no seu recente livro A Criação, que a relação entre ciência e religião se pode colocar ao nível metafísico, mas que ela se pode também colocar ao nível da colaboração recíproca para a salvação do nosso planeta e da vida que nele existe e, neste segundo sentido, essa relação é não só menos complexa que no sentido metafísico, como também mais frutuosa. Concordo inteiramente com esta posição e é por isso que não posso deixar de me surpreender com a posição extremista de Richard Dawkins, que não vê na religião senão desvantagens para a humanidade.